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26 de Abril de 2024

Arquivamento de inquérito e coisa julgada

Insegurança jurídica

Publicado por Nadir Tarabori
há 9 anos

De acordo com o CPP, ao receber a notícia de um crime, deve o Delegado de Polícia instaurar inquérito. A partir de então, presidirá as investigações. Para tanto, conta com uma prazo determinado, que pode ser prorrogado sucessivas vezes. Quando reputa esgotadas as diligências ou concluídas as investigações, encerra seu trabalho com um relatório e o manda ao Ministério Público.

O Promotor de Justiça, então, analisa os elementos de prova do inquérito e pode decidir por: i) denunciar o indiciado; ii) pedir novas diligências; iii) pedir arquivamento do inquérito. Diz-se, por isso, que o inquérito serve para formar a opinio delicti do Representante do Ministério Público, ou seja, seu convencimento acerca da existência do crime. Por incumbir, em regra, ao Promotor de Justiça ingressar com a ação penal, ele é tido como dominus litis, é dizer, é ele o “dono” da ação penal.

O arquivamento, por sua vez, pode ocorrer por três motivos: i) inexistência de provas sobre a condenação; ii)inexistência de crime (seja porque o fato é atípico, seja porque o réu agiu acobertado por excludente de ilicitude); iii) advento de causa de extinção da punibilidade (geralmente por prescrição ou decadência).

Em qualquer desses casos, o pedido de arquivamento, feito pelo Promotor de Justiça, vai ao Juiz, que decide sem vinculações. Se não concordar com o pedido, pode aplicar o art. 28 do CPP e mandar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, que decidirá se insiste na promoção de arquivamento ou se entende que a denúncia deve ser oferecida, caso em que designa outro Promotor para o caso.

Em geral, o arquivamento do inquérito não afasta a possibilidade de sua reabertura, desde que colhidas novas provas da infração. Nesse caso, segundo a jurisprudência, cabe ao Promotor de Justiça, apresentando as novas provas, fazer pedido de desarquivamento ao Juiz competente, a quem caberá decidir sobre tal possibilidade.

Ou seja, o arquivamento do inquérito não faz coisa julgada. Contudo, essa regra tem uma exceção: se o inquérito foi arquivado em razão da inexistência de crime ou por extinção de punibilidade, a decisão de arquivamento faz coisa julgada material e, em termos claros, sepulta definitivamente aquele caso, que não mais pode ser retomado.

A distinção reside no fato de que, no arquivamento por falta de provas, não se exerce análise sobre o fato em si (exatamente por falta de base empírica), ao passo que no caso de inexistência de crime ou extinção de punibilidade, há valoração fático-jurídica, ou seja, o Juiz analisa os fatos e lhes dá uma qualificação jurídica, atribuindo-lhes resultado. Sendo assim, adentra no mérito da demanda e, ao fazê-lo, vincula-se de forma indelével, de modo que sua decisão, após preclusa, impede a rediscussão da matéria.

Em termos gerais, essas são as diretrizes que regulam a questão do inquérito policial e seu arquivamento.

Simples assim? Ao menos, até a última terça-feira era.

No entanto, nessa data, a 1ª Turma do STF resolveu alterar esse panorama ao julgar o HC 95.211. Eis o quenoticiou o site do Supremo:

É possível reabrir inquérito policial arquivado por ausência de ilicitude, com a excludente de estrito cumprimento do dever legal. Esse foi o entendimento da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que, por maioria dos votos, negou Habeas Corpus (HC 95211) ao delegado de polícia G. S. L. F. Acusado de cometer, supostamente, crime de homicídio no ano de 1992, no estado do Espírito Santo, o delegado contestava a reabertura de ação penal contra ele tendo em vista estar protegido por decisão que arquivou, em 1995, outro inquérito policial sob a mesma acusação.

Os ministros entenderam que o caso não faz “coisa julgada material”, considerando ser possível a reabertura do processo em razão de novas provas.

No caso analisado, um delegado de polícia havia sido acusado de homicídio. Em 1995, o inquérito instaurado contra ele foi arquivado mediante reconhecimento do estrito cumprimento do dever legal, ou seja, admitindo-se a presença de excludente de ilicitude.

Narra a notícia do site:

Segundo relatório lido pela ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, a vítima estava em situação irregular com a legislação, foi perseguida em decorrência disso e, na perseguição, mostrou a arma, tendo o delegado reagido, causando a morte da vítima. Na fase de investigação, ocorrida em 1995, testemunhas disseram que o delegado atuou no estrito cumprimento do dever legal. Assim, o pedido do promotor para o arquivamento do inquérito policial foi atendido, uma vez que apesar de existir fato típico, não haveria ilicitude, isto é, crime.

Em 2000 foi instalado um grupo de repressão do Ministério Público para apurar o crime organizado na região. Em seguida houve a instauração de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), no âmbito estadual e nacional, em que se verificou atribuição de outro nome para a vítima, além de a reação do acusado ter sido considerada como queima de arquivo, por ter atirado a curta distância, o que teria sido comprovado por novas provas.

No ano de 2005, o Ministério Público, ao considerar as novas provas, pediu o desarquivamento do inquérito policial, tendo sido atendido. G. S. L. F. Impetrou habeas corpus, alegando que não havia novas provas e que em razão de um arquivamento anterior, estava protegido pela coisa julgada material e formal, nos termos da Súmula 524, do STF.

O voto da relatora (Min. Carmen Lucia) foi no sentido de que os precedentes do STF admitem a formação de coisa julgada material a partir da decisão de arquivamento de inquérito apenas quando reconhecida aatipicidade da conduta ou a extinção de punibilidade, não abarcando a hipótese de excludente de ilicitude.

O Min. Ricardo Lewandowski seguiu a relatora por fundamento diverso, ao entendimento de que a prova da excludente de ilicitude foi fruto de fraude e, portanto, inapta para embasar a prolação de decisão que produza coisa julgada material. O Min. Carlos Britto seguiu a relatora, restando vencidos os Ministros Marco Aurélio e Menezes Direito.

A despeito do score apertado, é inegável que uma decisão do STF sobre o tema, inaugurando abordagem inédita da matéria, tem potencial de gerar efeito multiplicador, sendo lícito esperar-se, num futuro próximo, uma enxurrada de pedidos de reabertura de inquéritos arquivados pelo reconhecimento de excludente de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito). Diante da importância do precedente, a matéria reclama uma abordagem detida.

Em seu voto, a Min. Carmen Lúcia citou que os precedentes do STF sobre a matéria reconhecem a produção de coisa julgada material na decisão de arquivamento de inquérito apenas quando se pronuncia atipicidade de conduta ou extinção de punibilidade.

De fato, pesquisando a jurisprudência do Supremo, é possível encontrar diversos julgados dizendo que “o pedido de arquivamento de inquérito policial, quando não se baseie em falta de elementos suficientes para oferecimento de denúncia, mas na alegação de atipicidade do fato, ou de extinção da punibilidade, não é de atendimento compulsório, senão que deve ser objeto de decisão do órgão judicial competente, dada a possibilidade de formação de coisa julgada material” (Pet 3943, Relator (a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 14/04/2008). Sendo assim, há vários precedentes que deixam de fora a menção a exclusão de ilicitude, restando saber se a omissão é proposital ou se tratou de mera alusão genérica à matéria.

Penso tratar-se da segunda hipótese, até porque o STF, até então, não havia enfrentado a matéria e não há precedente da corte admitindo a reabertura de inquérito arquivado em razão do reconhecimento de excludente de ilicitude. O simples fato de ser omissa a jurisprudência do STF não quer dizer que, neste caso, não se produza coisa julgada material.

Como se sabe, o conceito formal de crime envolve três elementos: fato típico, antijurídico e culpável (para alguns a culpabilidade não se inclui no conceito, é pressuposto de punibilidade). O reconhecimento da atipicidade da conduta (que, segundo o STF, produz coisa julgada material) afasta um dos elementos do crime; com efeito, sem fato típico não se fala em delito.

Por outro lado, ao reconhecer a excludente de ilicitude, o magistrado afasta o segundo elemento formal de crime e, analisando o mérito e se pronunciando sobre os fatos e sua qualificação jurídica, expressa textualmente que, naquele caso, crime não há. Não porque inexistam provas do fato (neste caso o arquivamento não produz coisa julgado), mas porque o fato, devidamente comprovado e analisado, não se encaixa no conceito legal de crime, porque presente uma circunstância que exclui o confronto entre o fato praticado e a lei (antijuridicidade).

Sendo assim, nas duas hipóteses (atipicidade e excludente de ilicitude) o juiz analisa os fatos e conclui que crime não há. Por que, então, distinguir as situações e somente atribuir efeitos preclusivos à primeira? A distinção parece-me sem fundamento.

A prosperar a tese sufragada pela 1ª Turma do Supremo, bons advogados de defesa passarão a recorrer da decisão do magistrado que manda arquivar inquérito com base em reconhecimento de excludente de ilicitude, porque prejudicial a seus clientes, na medida em que gera insegurança jurídica ao não encerrar a situação de modo definitivo. De fato, nesse caso, é muito mais interessante que o Ministério Público denuncie o acusado (mesmo ciente de que está ele acobertado por excludente de ilicitude) para que o magistrado o absolva sumariamente reconhecendo a excludente de ilicitude manifesta (art. 397 do CPP) porque, neste caso, ter-se-á indiscutível eficácia preclusiva da decisão.

Convenhamos, a solução nada tem de lógica e é pouco prática, porque na verdade seria uma alternativa para escapar de um entendimento jurisprudencial que é igualmente despido validade lógica.

Se o juiz pode absolver sumariamente o acusado (sem instrução processual, repita-se, com base apenas nas provas trazidas no inquérito, basta ler o art. 397 do CPP) e com isso produzir sentença capaz de produzir coisa julgada material, por qual motivo sua decisão de arquivamento de inquérito, baseada nas mesmas provas, não produz tal efeito?

Não vejo, data venia, como aderir ao novo entendimento instalado na 1ª Turma do STF. O raciocínio é simples: crime = fato típico + antijurídico. Se o juiz, ao arquivar o inquérito, diz que o fato não é antijurídico, a discussão acaba aí, exatamente como acontece se ele disser que o fato é atípico (caso em que o Supremo admite a produção de coisa julgada material de sua decisão).

Por outro lado, admitida a tese de produção de efeitos materiais da decisão que arquiva inquérito com base em reconhecimento de excludente de ilicitude, resta igualmente afastada a tese defendida pelo Min. Ricardo Lewandowski de que a decisão de arquivamento foi baseada em prova fraudada, incapaz de ensejar prolação de decisão com eficácia preclusiva.

Isso porque a admissão da tese implica na aceitação da idéia de que é possível passar por cima de decisão judicial transitada em julgado se constatada a ilicitude da prova. Contudo, o único meio de impugnação de coisa julgada disponível no CPP é a revisão criminal que, como se sabe, somente pode ser utilizada pro reu e se volta à impugnação de sentença condenatória. Assim, também é incabível admitir que, por ser fraudada a prova que levou ao arquivamento, a decisão respectiva não produziria efeitos, na medida em que o ordenamento jurídico não outorga à acusação meios de desconstituir coisa julgada proferida em abono do investigado.

Provavelmente a matéria será levada ao plenário, até porque relevantíssima. Sua discussão é importante, sobretudo no atual estágio de nossa produção jurisprudencial, porque, como se sabe, uma decisão do STF tomada num dia passa a ser, na prática, automaticamente aplicada no dia seguinte em todos os Estados da Federação.

Contudo, na atual situação, a decisão do STF produz inegável insegurança, na medida em que torna passível de reabertura e revisão diversos casos definitivamente encerrados com base no reconhecimento de excludentes de ilicitude.

Nesse cenário, o Supremo transforma a decisão de arquivamento de inquérito baseada em excludente de ilicitude em uma verdadeira espada de Dâmocles a pesar sobre a cabeça do réu, porque tal decisão em nada o beneficia, apenas serve para prolongar o estado de indefinição. Neste caso, até que se passe o prazo prescricional, a espada continuará pendulando; a decisão de arquivamento será a corda que a segura, não se sabe até quando.


https://mpbertasso.wordpress.com/2009/03/14/arquivamento-de-inqueritoecoisa-julgada/

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